.
Por: ESA/OABSP - 24/04/2020
A vigilância epidemiológica em tempos de dengue e COVID-19
Stefani Miranda Lima[1]
Renata Miranda Lima[2]
Na busca de conferir uma maior proteção as questões relacionadas a saúde pública, a Constituição Cidadã de 1988 determinou a competência comum da União, Estados, Distrito Federal e dos Municípios para cuidar da saúde (art. 23, II da CF) e fixou competência concorrente entre os três primeiros entes federativos citados para legislar sobre a proteção e defesa da saúde (art. 24, XII da CF) e confiou, ainda, ao Sistema Único de Saúde as ações de vigilância sanitária e epidemiológica.
Todas essas medidas representaram concretizações das novas aspirações ideológicas e filosóficas que foram positivadas na Constituição de 1988, mas que germinaram no seio da sociedade com a ascensão do Estado Social de Direito, após a II Guerra Mundial, no qual o Estado deixou de se abster e tomou consciência da necessidade de sua atuação positiva no corpo social[3]. Esse modelo social de Estado foi responsável por superar o Estado de Direito que defendia um conceito de Estado abstencionista, um “Estado (…) demissionário de qualquer responsabilidade na promoção do bem comum”[4], como bem analisou Paulo Bonavides no seu livro ‘Do Estado Liberal ao Estado Social’.
Todavia, apesar da extensa previsão constitucional sobre a proteção a saúde, a Constituição não conceituou o termo ‘vigilância epidemiológica’, deixando isso a cargo do legislador ordinário. Assim, foi a Lei nº 8.080 de setembro de 1990 – ao dispor sobre promoção, proteção e recuperação da saúde, dentre outros assuntos – que estabeleceu em seu art. 6º, § 2º o conceito de vigilância epidemiológica que consiste num “conjunto de ações que proporcionam o conhecimento, a detecção ou prevenção de qualquer mudança nos fatores determinantes e condicionantes de saúde individual ou coletiva, com a finalidade de recomendar e adotar as medidas de prevenção e controle das doenças ou agravos”[5].
Dentre essas ações que buscam o conhecimento, a detecção e a prevenção de doenças, a Lei nº 6.259 de outubro de 1975 – a qual versa sobre a organização de vigilância epidemiológica – estatui que as doenças que impliquem em isolamento ou que constem em relação elaborada pelo Ministério da Saúde devem ser notificadas às autoridades sanitárias. Essas autoridades, por sua vez, devem proceder às investigações epidemiológicas para averiguar e diagnosticar a disseminação da doença na população sob risco (art. 11), bem como adotar as medidas adequadas para o controle da doença (art. 12)[6].
Importante observar, no entanto, que o combate às epidemias tem longa data na história do Brasil. À exemplo disso, em 1903, foi iniciado o combate à febre amarela tendo como principal protagonista Oswaldo Cruz. Na época foi aplicado um método em que “dezenas de funcionários percorriam a cidade desinfetado ruas e casas, interditando prédios, removendo doentes. Foram especialmente visados os cortiços, conjuntos de habitações anti-higiênicas onde se aglomerava à demolição”[7]. Já em 1904, iniciou-se o combate a varíola, tradicionalmente feito por meios da vacinação, o que não foi bem aceita pela população. A resposta à essas medidas se deram com a eclosão da Revolta da Vacina reprimida pelos militares[8].
Nos últimos cinco anos a dengue tem se apresentado como uma das epidemias que têm assolado, especialmente, os países tropicais e subtropicais da América Latina e Ásia, conforme informa o Pan American Health Organization – PAHO[9]. Segundo o informativo divulgado em 7 de fevereiro de 2020, entre a 1º e a 521 semanas de 2019 foram notificados 3.139.335 casos da doença e 1.538 mortes nas Américas, de modo que o número de casos registrado ao longo do ano de 2019 representou o maior recorde da história da dengue nas Américas. O informativo destaca que entre a 1º e a 5º semana do ano de 2020 foram verificados 155, 343 casos de dengue, nos quais incluíam-se 28 mortes.
Diante desses dados, surge a tensão entre a autoridade e a liberdade, pois o combate e a prevenção contra algumas epidemias positivado nos artigos 11 e 12 da Lei nº 6.259/75, tais como a dengue, exige a intervenção estatal em ambientes privados, como estabelecimentos comerciais e residências. Contudo, tal fato adquire contornos ainda mais delicados quando somados ao atual momento, no qual a epidemia COVID-19 ganhou proporções mundiais e, por causa de sua fácil disseminação, impede os agentes sanitários de continuarem o combate à dengue na esfera domiciliar.
Diante da colisão entre o dever-poder da Administração Pública de vigilância sanitária e o interesse da inviolabilidade de espaços privados é sólido o entendimento de que o interesse público de cuidar da saúde se sobrepõe à garantia constitucional da inviolabilidade do lar (art. 5º, XII da CF). A proteção da casa por parte do Estado tem registro na Idade Média, pois com a ascensão da burguesia, o declínio do feudalismo e a consequente evasão das comunidades para foro dos castelos, o Estado assumiu a posição de garantidor da proteção da casa, substituindo a função de autoproteção das pessoas que os castelos ocupavam.
Sobre o tema, Dinorá Adelaide Musetti Grotti observou que a nobreza inglesa “favoreceu, significativamente, a promoção das liberdades, defendendo, antes de mais nada, os direitos de ir e vir e a inviolabilidade do domicílio contra eventual abuso do poder real”[10]. Esse é, pois, o motivo de antes de a Constituição Francesa erigir a patamar constitucional a inviolabilidade do domicilio, o cidadão inglês já podia declarar “my house is my castle”[11]. Todavia, após a Revolução Francesa surgiu uma série de disposições que subjugavam ao Direito a conduta soberana do Estado em suas relações com os administrados, o que se converteu, posteriormente, num ramo do Direito Público chamado de Direito Administrativo[12].
Um dos principais pilares que regem esse ramo do Direito é o interesse público primário, que consiste no “interesse público propriamente dito, ou seja, é o interesse que cada um tem como participe da sociedade”[13]. Nesse sentido, diante da colisão entre o princípio constitucional à inviolabilidade do lar e o interesse público no combate às epidemias, prevalece o combate às epidemias como uma representação da supremacia do interesse público sobre o privado que proclama “a superioridade do interesse da coletividade, firmando a prevalência dele sobre o do particular, como condição, até mesmo, da sobrevivência e asseguramento deste último”[14].
Portanto, com o surto pandêmico que assola o mundo impõe-se o dever da Administração Pública de combater e buscar formas de prevenção contra a dengue e contra o COVID-19, conforme dispõe os artigos 11 e 12 da Lei nº 6.259/75. Para tanto, não se deve dispensar a análise e diagnóstico por parte de agentes de saúde nas regiões de alta incidência de casos de dengue, pois a estagnação no seu combate pode potencializar os números de casos, como informou o PAHO[15]. Todavia, não se pode desconsiderar a disseminação do COVID-19 e os riscos que os agentes sanitários enfrentam no combate às epidemias. Por isso, a melhor medida a ser tomada é a divulgação nas redes sociais, de jornais e de televisão dos cuidados necessários para o combate à dengue, pois se cada cidadão proteger a sua casa contra a dengue o número de mortes no primeiro semestre desse ano certamente será menor.
[1] Graduanda em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2017-2021). Voluntária na Assistência Jurídica 22 de Agosto. Monitora na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo sob a supervisão do Professor Luiz Sérgio Fernandes de Souza e do Professor Silvio Luís Ferreira da Rocha. Integrante do Grupo de Diálogo Universidade – Cárcere – Comunidade (GDUCC) vinculado ao departamento de Direito Penal, Medicina Forense e Criminologia da Faculdade de Direito da USP. Atuou enquanto estagiária no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Email: stefanimirandalima@gmail.com
[2] Pesquisadora da Escola Superior da Advocacia ESA/OAB-SP (2020). Mestranda pela Universidade Nove de Julho em Direito (2018-2020). Coordenadora Adjunta do Núcleo de bolsas e desenvolvimento Acadêmico do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCCRIM (2019-2020). Coordenadora Adjunta do Grupo de ações indiscriminatórias do Grupo Prerrogativas (2019-2020). Atuante em ações Adovocacy pelo curso AdvocacyHub. Pós-Graduada pela Universidade Castilla La Mancha – UCLM em negociação, conciliação e mediação em resolução de conflitos (2018). Pós-Graduada pelo Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCCRIM em parceria com o Instituto Ius Gentium Conimbrigae (IGC) Centro de Direitos Humanos da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, em Direitos Fundamentais Internacionais (2017). Graduada em Direito pela Universidade Nove de Julho – UNINOVE (2016). Email: renatamirandalima@yahoo.com.br
[3] BONAVIDES, Paulo. Do Estado Liberal ao Estado Social. 8ª ed. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 60.
[4] Ibidem. p. 40.
[5] BRASIL. Lei nº 8.080 de setembro de 1990. Brasília. Distrito Federal, setembro de 1990. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8080.htm. Acesso em: 22/04/2020.
[6] BRASIL. Lei nº 6.259 de outubro de 1975. Brasília. Distrito Federal, outubro de 1975. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L6259.htm. Acesso em: 22/04/2020.
[7] Carvalho, José Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. 22º ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016. P. 79.
[8] Idem.
[9]Disponível:https://www.paho.org/hq/index.php?option=com_docman&view=download&category_slug=dengue-2217&alias=51690-7-february-2020-dengue-epidemiological-update-1&Itemid=270&lang=en. Acesso em: 22/04/2020.
[10] GROTTI, Dinorá Adelaide Musetti. Inviolabilidade do Domicílio na Constituição, São Paulo: Editora Malheiros, 1993. p. 18
[11] Idem.
[12] Bandeira de Mello, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 26 ed. São Paulo: Saraiva, 2009.
p. 39.
[13] Idem. p. 66.
[14] Idem. p. 62.
[15]PAHO-Pan American Health Organization. Disponível:https://www.paho.org/hq/index.php?option=com_docman&view=download&category_slug=dengue-2217&alias=51690-7-february-2020-dengue-epidemiological-update-1&Itemid=270&lang=en. Acesso em: 22/04/2020.